O debate sobre Governança Fundiária vem ocorrendo nas últimas décadas através de Encontros Internacionais, em que há envolvimento dos países através de seus órgãos públicos de terra, das Corregedorias dos Estados, dos Cartórios de Registros de Imóveis, e das instituições vinculadas à sociedade civil, em que o escopo visa conciliar elementos econômicos, políticos e sociais.
Desta maneira, a Governança Fundiária atua como um instrumento que busca a otimização da gestão da terra, contribuindo para o aprimoramento da política fundiária, visando o desenvolvimento sustentável do meio rural, a partir da perspectiva da afirmação da diversidade sociocultural e ambiental, que envolve o universo de estabelecimentos da produção da agricultura e das áreas não destinadas para agricultura, e as suas conexões com os diferentes setores, tanto no espaço rural quanto urbano. Assim, a Governança Fundiária visa atender a todo um ordenamento que vem reger o uso correto das terras em território nacional e as normas as quais irão determinar a forma correta de acessar e de usufruir dessa terra.
Destarte, o atual momento que perpassa a discussão sobre o modelo de uso da terra para produção agrícola e sua relação com meio ambiente, envolve diretamente a Gestão Fundiária, principalmente no que concerne as demandas de produção de alimentos, infraestrutura, expansão dos centros urbanos, proteção dos recursos naturais e produção de energia, fato em si que perpassa pela necessidade de uma ampla articulação mundial na área política e estratégica, entre os diferentes governos e instituições multilaterais, para tratar da Governança Fundiária.
No Brasil a Gestão Fundiária perpassou pelo processo de sesmarias, de capitanias hereditarias, e posteriormente por diversas normas dentre elas temos: Lei n.º 601 de 18 de setembro de 1850 (Lei das Terras); Lei n.º 4.504, de 30 de novembro de 1964 (Estatuto da Terra); Lei n.º 6.015, de 31 de dezembro de 1973 (Registros Públicos); Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB), de 1988; a Lei n.º 11.952, de 25 de junho de 2009 (Regularização Fundiária em terras da Únião na Amazônia Legal); Lei nº. 10.267, de 28 de agosto de 2001 (Lei de Criação do Sistema Público de Registro de Terras, originária do PL no. 3242/2000); Decreto n.º 10.592, de 24 de dezembro de 2020 (Regulamenta a Lei n.º 11.952, de 2009); Instrução Normativa Nº 104, de 29 de janeiro de 2021 (Fixa os procedimentos para Regularização Fundiária das ocupações incidentes em áreas rurais, de que trata a Lei n.º 11.952, de de 2009). Além das normas de terra em vigor, tramita no Congresso e no Senado Federal o Projeto de Lei n.º 2.633, de 2020, que aumenta o tamanho de terras da União passíveis de regularização fundiária sem vistoria prévia, bastando a análise de documentos e de declaração do ocupante de que segue a legislação ambiental.
Portanto, conforme exposto, é importante esclarecer, que a ausência de controle sobre a divisão de terra no Brasil é antiga, vem desde a Colonização Portuguesa, em que até hoje existe uma lacuna e ausência de uma conexão entre Cadastro de Georreferenciamento e Cartório de Registro de Imóveis, fato que em si demonstra ausencia de Gestão Fundiária Integradora.
A título de ilustração da situação de Cadastro de Georreferenciamento e da conexão com o Cadastro de Registro de Imóveis, o Brasil tem 851 milhões de hectares e 5.570 municípios, o que equivale duas vezes à União Europeia, entretanto apresenta seus diversos cadastros fragmentados e dissociados. Mais grave ainda é detectar que há municípios sem Cadastro Georreferenciado, dados sem padrão, incompletos ou desatualizados, e que esses Cadastros Urbanos e Rurais são separados.
Portanto, existe ausência de integração entre Cadastros de Georreferenciamento e os Cartórios de Registros de Imóveis, e entre as bases cadastrais dos municípios. Isso equivale dizer, que metade dos imóveis urbanos não tem Escritura Pública no Brasil, faltando integração da base de dados dos imóveis.
Isso reflete em insegurança jurídica na compra e venda dos imóveis, para comprovar basta analisar os dados do Ministério do Desenvolvimento Agrário (2001) em que salienta que em termos de terras griladas há um contingente de 100 milhões de hectares de terras griladas, que representa quatro vezes o Estado de São Paulo e duas vezes a Espanha, sem olvidar que temos no pais terras de papel ou beliches fundiários, que representa área registrada maior que a área oficial. Portanto, sem integrar os bancos de dados, os diferentes Sistemas Cadastrais e resgatar as informações relativas aos imóveis incorporados ao patrimônio público e destinados, o caos vai continuar no país em relação a Governança Fundiária
Vale ressaltar, entretanto, que o país precisa estabelecer uma estrutura de gestão eficiente, sistêmica, completa, integrada e de abrangência nacional para o Sistema de Cadastro Territorial, integrando principalmente o Rural com o Urbano com base no Georreferenciamento de Parcelas Territoriais, fazendo a conexão com o Registro Cadastral nós Cartórios.
É importante esclarecer que o avanço de uma Governança Fundiária perpassa necessariamente por um eficiente Sistema de Cadastro Territorial com base no Georreferenciamento e a conexão com o Registro Cartorial. Mas, nesse aspecto, temos muito ainda a evoluir no Brasil. O certo é que a partir da Lei no.10.267, de 2001, todos os imóveis rurais deveriam ser Georreferenciados pelo Sistema Geodésico Brasileiro, observados os prazos legais, cujo escopo principal seria evitar a superposição de áreas, as fraudes, as grilagens e as distorções nos dados, e principalmente garantir mais segurança jurídica e veracidade aos registros.
Esse procedimento também deve ser adotado em todos os autos administrativos e judiciais que versem sobre imóveis rurais. Portanto, para Georreferenciar um imóvel rural a partir desta norma é necessário o Memorial Descritivo do Imóvel, contendo as coordenadas dos vértices definidores dos limites dos imóveis rurais, Georreferenciadas ao Sistema Geodésico Brasileiro e com precisão posicional a ser fixada pelo INCRA – com a devida ART, assinado por um profissional habilitado e credenciado pelo INCRA, e a certificação realizada pelo INCRA.
Apesar de ser uma exigência legal, o não cumprimento do Georreferenciamento da Propriedade Rural não acarreta multas. Porém, o proprietário fica proibido de realizar qualquer Procedimento de Desmembramento, Remembramento ou Parcelamento de sua Propriedade até que ela esteja regularizada junto ao INCRA.
Atualmente, Georreferenciar a Propriedade é uma medida regulatória essencial, uma vez que imóveis Georreferenciados e devidamente regularizados irão possuir uma maior credibilidade ao serem comercializados e na maioria das alienações fundiárias, compradores nacionais e estrangeiros, optarão por imóveis que já possuem a documentação regulamentada da propriedade. Além disso, em alguns bancos, a certificação do imóvel pelo INCRA já se tornou obrigatória para o processo de financiamento de crédito.
Mesmo com esse avanço proporcionado pela Lei no.10.267, de 2001, a Governança Fundiária, ainda, esbarra em conflitos, principalmente, da ordem de Cadastro de Georreferenciamento e de Cadastro de Registro de Imóvel, visto que não está claro, itens como a posse e ocupação da terra, o valor da terra, o uso da terra, e o desenvolvimento da terra. Há muitos órgãos atuando e sem conversar entre si, sem olvidar que a regularização fundiária é realizada por cada um ente público com cadastro distintos, não há um identificador único no país.
Como proposta para superação da inexistência de Governança Fundiária, extrai-se proposições, fruto do GEO+20, para equacionar essas questões, ligadas a desconexão do Cadastro do Georreferenciamento com o Cadastro do Registro de Imóveis, como: i) o Estado Brasileiro precisa assumir seu papel de Governança Fundiária como uma Política de Estado com índice de Governança Fundiária; ii) Construção de um Cadastro Integrado Único entre os entes públicos; iii) Regularização das Posses e Ocupações Privadas existentes; iv) Identificar e se apropriar das Terras Devolutas e Remanescentes; v) Integração das legislações fundiárias federais, estaduais e municipais para atingir os fins acima elencados; vi) Criação de um Quadro Institucional que atenda às necessidades de Governança Fundiária pelas Terras no Brasil, inclusive os Estados precisam instituir essa Governança Fundiária; vii) A Gestão da Governança de Terra tem que estar junto a órgão hierarquicamente superior aos ministérios (por exemplo Casa Civil), em virtude da existência de diversos cadastros em órgãos distintos e a difícil decisão de colaboração entre os mesmos pela insistência de não unificar dados e informações; viii) A Necessidade da Integração do Georreferenciamento Urbano com o Rural, como Política de Sistema de Governança da Terra; e ix) A Elaboração de Legislação pertinente a Gestão Territorial e ao Cadastro de Imóveis.
Portanto, fica claro, que ainda há a necessidade de estreitar a relação entre o Poder Executivo, o Legislativo, e o Judiciário, atinentes a uma padronização de normativas, de Políticas Públicas de Governança Fundiária, e da necessidade premente de uma relação mais próxima da União com os Estados e os Municípios, visando equacionar e desmitificar esses excessos de cadastros existentes, que não se coadunam, não conversam, e que impossibilita a conexão, originando prejuízos de milhões de reais e desperdício de capital humano.
É urgente a necessidade da integração dos Sistemas Cadastrais e o Registro de Imóveis para uma eficiente Gestão Fundiária, sabe-se que é viável, principalmente com a tecnologia e conhecimento que o país desenvolveu durante esses 21 anos após a criação da Lei n.º 10.267, de 2001. Urge a necessidade de deixar de lado as vaidades institucionais e trabalhar em função de Diretrizes de Estado como Política de Governança da Terra.
Com essa ausência de conexão entre os Cadastros de Georreferenciamento e o Cadastro de Registros de Imóveis há uma renúncia fiscal bilionária em que o país deixa de arrecadar, sem olvidar que essa Desgovernança Fundiária, favorece a Grilagem de Terras Públicas (Devolutas e Remanescentes), sobreposição de terras públicas e privadas, expulsão dos posseiros, e distribuição irregular de títulos.
Paulo Figueira, Advogado, Mestre em Direito Ambiental.